Sobre “Sonetos sem chave e outras mágoas” de Virgílio Carneiro

Após o lançamento da obra, “Sonetos sem chave e outras mágoas”, em Vila Nova de Famalicão e Penafiel, chegou o momento de incluir Virgílio Carneiro na plêiade de Poetas & Trovadores.

O poeta começa por afirmar que os seus sonetos não têm chave, mas isso não tem importância, pelo contrário, adensa o mistério e causa no leitor uma forte curiosidade. O simbolismo da chave está associado ao duplo papel de abertura e fechamento, mas, muitas vezes, entramos e não queremos sair, pretendemos ficar. A chave está igualmente associada ao reino dos céus e tem o poder de “ligar ou desligar, abrir ou fechar o céu, poder efetivamente conferido a São Pedro por Cristo.” 1Mas a chave pode significar, no plano esotérico, iniciação, isto é, o acesso a um estado, a uma morada espiritual. No Japão, é símbolo de prosperidade. No entanto, ela é mais o símbolo do mistério a penetrar, do enigma a resolver, a solução para o problema. Estes sonetos não têm chave, porque eles são expressão da indignação: “Facit indignatio versum” (pág.3); e, quando tudo é vazio, não há espaço algum que precise de chave, nem fechadura que resista ao ferrolho da maldade.

Trata-se de um livro de mágoas e de reflexões trabalhadas na forma de poesia, onde não falta uma enorme sensibilidade e uma hábil expressão do pensamento apoiada em metáforas com dose de ironia à mistura. São vários os poemas em que se encontra a mágoa pelo desconcerto do mundo e a falha de humanismo nas relações das pessoas; igualmente assomam a imbecilidade e a hipocrisia do mundo atual, em oposição à ética e à dignidade que devem nortear o comportamento humano. Lembrando Juvenal, poeta satírico romano, o sujeito poético afina o seu aguilhão e aponta-o a todos quantos não pugnam pela identidade e transformam a atividade política num circo. A deceção perante a “causa pública” é, assim, outra linha de força que atravessa estes sonetos e à qual se liga o sonho, a efemeridade da vida e o querer adiado do que perspetivámos para a nossa Passagem. Deus também não é aqui palavra morta: Ele surge aliado à Fé e aos verdadeiros princípios que a cegueira dos homens não capta.

Após a “Nota ao Editor”, em que há uma explicação do conteúdo e da natureza da obra, surge uma alusão a Juvenal, Sátiras-1.1.79 “Facit indignatio versum” como forma de advertência ao leitor sobre a natureza indignada dos seus versos.

Depois, seguem-se os “Sonetos sem chave” – impregnados de humanismo e rebeldia, sobretudo, quando o sujeito poético ataca, sob forma caricatural, a paródia política – sonetos que desaguam em “Outras mágoas”, capítulo subsequente de composições mais livres (sem obedecer ao espartilho do soneto), roçando até pela prosa e constituindo um manual de advertência e sobrevivência para os mais incautos. A finalizar esta coletânea, o poeta surge “procurando a chave”, conferindo, assim, à obra a circularidade temática; isto é, o tema de abertura “a chave” concentra em si todas as lucubrações poéticas, sugerindo a teia labiríntica em que o ser se move. O sujeito de enunciação, no seu último rasgo, vai descendo dentro de si e no tempo, à procura de explicações para a inexplicável avidez material e falha de inteligência que contaminou os humanos e, nestes momentos introspetivos, surge a saudade do que foi e já não é e o eterno regresso à natureza simples do campo, com a sua capacidade cíclica de renovação. Estas lembranças aliadas a um halo de transcendência transformam o final da obra num cântico de esperança, vencidas a raiva e a indignação da autolatria do presente.

E, após esta abordagem da obra, devo uma nota explicativa: tive a honra de conhecer o autor como colega e amigo de profissão, o poeta, esse descobri-o, por acaso, e tenho a impressão que ainda há muito por conhecer, pois, pela medida do seu talento, muitas outras nótulas literárias poderão ainda nascer. Fico à espera de mais…

Também para o editor uma palavra amiga, de parabéns, pois reconheço que, como autor material da obra, deixou aqui a sua marca substancial de escritor, através da sensibilidade poética que impregnou à composição.

                                                                                                    Júlia Serra


1 Dicionário dos símbolos, Jean Chevalier, pág.191,1994

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